Quem nunca soube de crianças interioranas trazidas para estudar na capital, mas que acabavam por servir de empregadas? Ou ouviu histórias de mães que doam seus filhos a “padrinhos” na esperança de oferecer um “futuro” melhor? (ou vendê-los mesmo, sem floreios, para “arrumar uns trocados”) Pior sorte, talvez, vivenciam aquelas crianças exploradas nas fazendas, nas embarcações ou vendidas para a prostituição e para o mercado sexual, como tantas vezes tem sido noticiado pela imprensa local. Como explicar tantos desrespeitos aos direitos das crianças? Sem dúvida, algumas explicações podem ser encontradas no nosso passado histórico; e, infelizmente, naquele mais doloroso: dos tempos da escravidão.
No século XIX, circulavam pelos rios centenas de igarités amontoadas de mercadorias que alimentavam o comércio conhecido como regatão. Vendas e trocas eram estabelecidas entre os mercadores e as comunidades ribeirinhas, quilombolas, amocambados, populações indígenas e comerciantes estrangeiros. Em meio a tais atividades, circulava outro tipo de comércio em pleno vigor, apesar de ilegal: compra e sequestro de pessoas, muitas delas crianças. No Japurá, circulavam anualmente trinta ou quarenta grandes canoas tripuladas por comerciantes portugueses e brasileiros que seguiam mata adentro, por vezes atravessando as fronteiras e atingindo a Colômbia, para negociar com tuxauas e chefes de tribos indígenas aquilo que já havia sido negociado (e pago) um ano antes.
Eram carregamentos de crianças, meninos robustos e meninas bonitas, que seriam vendidas nas praças de Manaus, de Belém ou mesmo de outras províncias do Império. Aguardente, tabaco, espingardas, bijuterias, etc. serviam para levar à cabo as negociações de compra e venda. Proporcionalmente, dois machados equivaleriam a um menino robusto. As meninas bonitas tinham reconhecido valor porque poderiam servir de concubinas, amantes de seus compradores. Cada uma das igarités poderia carregar de dez a vinte índios; eram conduzidos por cordas ou, da maneira mais comum à época, presos com ferros ao pescoço. Uma vez embarcados, pagava-se com antecedência o valor estimado do carregamento do ano seguinte. Mães e filhos logo seriam apartados. Filhos eram vendidos em um lugar, mães em outro.
Quando não eram comprados, eram sequestrados. Isto feito, tinham seus nomes trocados e com o passar do tempo muitos sequer recordavam de seus antigos nomes e parentes. Isso tornava difícil o rastreamento das famílias das crianças vendidas e inviabilizava a atuação da polícia, que se via incapaz de investigar os responsáveis por fazer circular as mercadorias. Para piorar, sujeitos de diferentes origens étnicas e sociais participavam do comércio. Brancos – pobres ou abastados-, negros – livres ou escravizados -, e indígenas destribalizados também atuavam como mercadores. Menos violentos eram os que buscavam “seduzir” os menores: promessas de enriquecimento, de emprego, do aprendizado da leitura e da escrita, de casamento, de educação, de instrução, de passeios, enfim, eram muitos os meios de ludibriar as crianças.
Já nas cidades, os pequenos eram vendidos em plena luz do dia. Das praças seriam levados por seus compradores. Muitos seriam utilizados como criados, serventes, aplicados aos serviços domésticos. Lavar roupas, cuidar de arrumar casas, cozinhar, costurar. Eram chamados de “xerimbabos” (nome de origem tupi para animais de criação) ou “fâmulas”. Também se viam ocupados em fazer serviços de compras e vendas, e por isso vagavam pelas ruas da capital. Perambulavam em meio a outros menores. Encontravam-se entre os fugidos do Educandário dos Artífices e órfãos legalmente tutelados. Tentavam a sorte em jogos de azar com crianças negras escravizadas. Ou saíam correndo entre os bandos de “pequenos negrinhos alegres e despreocupados” de que nos fala Elizabeth Agassiz. Outros seriam levados para os serviços das fazendas nas margens rio Amazonas. Muitos eram empregados na extenuante atividade de extração da goma elástica e na fabricação da borracha, especialmente no rio Purus.
O que diziam as autoridades sobre isso? O ministro da justiça do império, o sr. José Carlos Pereira de Almeida Torres, falava abertamente sobre o tráfico de crianças, segundo ele conservadas “em perfeita escravidão, sob rigoroso trato”, denunciando que muitas eram vendidas para outras províncias ou mesmo para a Corte no Rio de Janeiro. Outro que nos dá informações é o viajante e naturalista inglês Henry Bates que chamava atenção para a diversidade étnica daqueles que haviam sido “vendidos ainda criança pelos caciques”. Descrevia um quadro dramático com alta mortalidade infantil e de intenso comércio de crianças na região de Ega (atual Tefé), chegando a ajuizar ser essa localidade, à época, um dos mais importantes mercados de escravos da região. Acusava ainda as autoridades brasileiras de cumplicidade no tráfico, pois sem a tolerância com o comércio de menores “seria impossível obter criados”.
Delegados, juízes, políticos, médicos eram alvo de denúncias nos jornais do Amazonas. Acusados de participar dos “negócios de menores”. Assim, a situação das crianças era de muita vulnerabilidade. Menores pobres ou recrutados para os serviços na marinha geralmente passavam pelas mãos de autoridades provinciais e, quase sempre, ficavam sob a responsabilidade do Juízo de Órfãos. Era frequente ver crianças pobres sendo levadas pelo poder público, tanto da capital quanto em localidades do interior. Nas comunidades mais distantes, as autoridades estavam despreparadas para enviar crianças para Manaus, ocasionando enganos nos destinos dados aos menores recolhidos e abrindo brechas para ações irregulares, sequestro, apossamentos ilícitos, “graves escândalos”. Em 1882, o próprio presidente da província, o sr. José Paranaguá, foi acusado de mandar prender os meninos desertores da Companhia de Aprendizes Artífices e outros menores desvalidos classificados como “vagamundos”. Retrucando a denúncia, José Paranaguá não economizou: “chamam isso de caçada, quando não há aqui casa que não tenha o seu curumim (menino tapuio) apanhado nos matos para servir de criado”.
Muitas dessas crianças eram negociadas, distribuídas e redistribuídas, conforme as conjunturas políticas locais. Amigos do “potentado no lugar” eram presenteados com crianças, com a disponibilização de órfãos; os inimigos eram punidos, prejudicados com a retirada das crianças que estavam sob seu poder – mesmo quando havia legalidade na tutela. As crianças enfrentavam diariamente a instabilidade, repetidas vezes desenraizamento e o medo constante de perder referenciais e abrigo, perder quaisquer estruturas que se assemelhassem ao ambiente familiar.
O uso de crianças como serventes, criados, “em perfeita escravidão”, era absolutamente comum, prática corrente, como atestam vários editais do Juízo de Órfãos publicados na imprensa. Além de expor a ilegalidade da situação de menores empregados nas casas da capital, os juízes lembravam aos “tutores” outra irregularidade: “deixar que seus tutelados vaguem pelas ruas desta cidade e consintam que eles se ocupem em fazer compras e vendas, como consta que assim praticam”. Em maio de 1889, denunciava-se o “abuso da lei” e os enganos aos quais estavam sujeitos indígenas como Vitalina, que no rio Uaupés foi recrutada para ser educada, mas vivia em “estado infeliz”. O denunciante alertava aos leitores que a escravidão para os índios não estava acabada “como comprovam mil fatos que cada qual pode se ver nos rios Negro, Purus e Solimões”. Insistia que os abusos verificados quanto ao costume de escravizar crianças, se não fossem punidos, produziriam “frutos venenosos corrompendo a sociedade”. E quanto à educação das meninas, indicava a presença de desigualdades raciais: “as habitantes das selvas tem o mesmo direito em face da lei que tem as filhas dos brancos”.
Ao lado das denúncias de “perfeita escravidão” são recorrentes na imprensa acusações de castigos e maus tratos contra as crianças. Em setembro de 1886, o noticiário do Jornal do Amazonas informava o “bárbaro castigo” sofrido pela menor Thereza Alves Ferreira cujo corpo estava “todo contundido e manchado de longas equimoses”. Em fevereiro de 1888, o Jornal do Amazonas rebatia as acusações contra um seu leitor, classificando como “fantasias” o “depoimento de uns meninos suspeitos” a respeito das acusações de “castigos e sevícias” cometidos contra a menor Adélia. Em março de 1886, o noticiário do Jornal do Amazonas explicava que o “pequeno índio” que trabalhava na casa de Thomaz Sympson não havia fugido por ser maltratado, mas por “sua índole nômade, como é a de todos os índios”. E retrucava contra seus acusadores: “fugiu como tem fugido outros da casa do sr. dr. Aprígio Martins de Menezes (…) sua senhoria julga que são maltratados os índios que fogem da casa de outros talvez porque em sua casa o tem isso os que dela tem fugido e nela tem morrido…”
A situação parece ter piorado depois de 1850, quando o tráfico de africanos para o Brasil foi definitivamente extinto. No ano de 1854, em plena Assembleia Geral do Império, os deputados discutiam um projeto de lei para conter o deslocamento de escravos comprados das províncias do norte para abastecer as demandas, cada vez maiores, do sudeste cafeeiro. O deputado João Mauricio Wanderley, parlamentar pela Bahia e promotor do projeto, justificava sua aprovação, entre outros motivos, pelo proposito de coibir “essa nova traficância de carne humana” em que se podia verificar “crianças arrancadas das mães, maridos separados das mulheres, os pais dos filhos”. E acrescentava: “não é tudo, senhores, já como consequência vai aparecendo no norte uma outra especulação, que é a de reduzir à escravidão pessoas livres…” Instado a argumentar sobre a moralidade de seu projeto de lei, o deputado lembrou a situação das crianças das províncias do norte, nas quais meninos de cor parda ou preta eram vendidos, vitimas dos que “empregam violência para roubar crianças e vende-las”.
Para desespero dos presidentes da província os crimes de escravização de pessoas livres persistiram durante todo o século XIX (e mesmo no XX) trazendo problemas para a diplomacia brasileira, além de piorar a imagem do país no estrangeiro que carregava o título nada lisonjeiro de uma das últimas nações escravistas do mundo. Não bastasse a escravidão negra, havia ainda força da “escravidão vermelha” no Amazonas.
O que tantas histórias nos revelam? Com certeza, as trajetórias de crianças negras e indígenas escravizadas ilegalmente ajudam a revelar a profunda vulnerabilidade sofrida por famílias não brancas na província do Amazonas. Fazem-nos lembrar de um passado que ainda persiste, no qual essas crianças vivenciaram os costumes e práticas escravistas que constrangiam o exercício de qualquer noção que elas tivessem de liberdade. Buscar compreender as histórias do nosso presente através das experiências dessas crianças do passado nos revela ainda uma questão avassaladora: escravidão até quando?
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