terça-feira, 3 de junho de 2014

Fiscalização flagra escravidão na extração de piaçava no Amazonas

Treze trabalhadores eram submetidos a servidão por dívida, jornadas excessivas e condições degradantes de alojamento em Barcelos (AM), no meio da floresta Amazônica
A vassoura que você usa em casa pode ter tido trabalho escravo em seu processo de fabricação.  Uma operação realizada entre 27 de abril e 11 de maio resgatou 13 pessoas em condições análogas à de escravos trabalhando na extração de piaçava em em duas comunidades rurais entre os municípios de Barcelos e Santa Isabel do Rio Negro, no norte do estado do Amazonas, a cerca de 400 quilômetros da capital Manaus.  A fibra, originária de uma das espécies de palmeira, é amplamente utilizada na produção de vassouras.
Piaçabeiros ficavam alojados em construções improvisadas no interior da floresta Amazônica. Fotos: MPT/AM
Os trabalhadores resgatados eram submetidos a jornadas excessivas e servidão por dívida e ficavam alojados em construções improvisadas no interior da floresta Amazônica, sem condições de segurança e higiene. Segundo os relatos colhidos pelos integrantes da fiscalização, eles extraiam a piaçava de segunda a sexta-feira. Nos fins de semana, faziam o beneficiamento da fibra, conhecido como “penteamento”. Participaram da operação representantes do Ministério Público Federal no Amazonas (MPF/AM), Ministério Público do Trabalho no Amazonas (MPT 11ª Região), Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Exército e Polícia Federal.
De acordo com informações do MPT, os trabalhadores contraíam dívidas já antes de iniciarem as atividades. Intermediários chamados de “patrõezinhos ou “aviadores” davam adiantamentos em dinheiro ou forneciam mercadorias e insumos necessários para a realização dos trabalhos, como combustível e alimentos, com valores superfaturados em até 140%.
Segundo o procurador Renan Bernardi Kalil, os “piaçabeiros” precisavam passar um longo período de tempo extraindo piaçava para enfim quitarem a dívida e obterem algum rendimento, que em média ficava em R$ 200 mensais. Nenhum dos 13 resgatados havia conseguido ganhar um valor correspondente ao salário mínimo brasileiro, de R$ 724, e em alguns casos novas dívidas eram contraídas. Além disso, descontos de 20% eram aplicados sobre o peso da piaçava extraída, tanto na entrega dos piaçabeiros aos intermediários, quanto no repasse destes ao empregador.
A escravidão contemporânea no Brasil é definida pelo artigo 149 do Código Penal. Segundo este, tanto jornadas excessivas, quanto condições degradantes de trabalho e servidão por dívida servem para caracterizar o crime. De acordo com o que os integrantes da operação apuraram, o empregador dos 13 trabalhadores resgatados era o empresário Luiz Cláudio Morais Rocha, o “Carioca”, proprietário da empresa Irajá Fibras Naturais da Amazônia. Depoimentos das vítimas e do próprio Luiz Cláudio confirmam que este visitava periodicamente os locais de extração e, portanto, sabia das condições precárias a que estavam submetidos seus funcionários.
O lugar onde os piaçabeiros trabalhavam e se alojavam era de acesso muito difícil. A equipe de fiscalização teve de viajar por horas para chegar à base montada pelos próprios trabalhadores. Um piaçabeiro de 61 anos, há 45 anos no ramo e desde novembro no atual trabalho, relatou que já continuou a extrair piaçava mesmo depois de ter sido picado por um escorpião. “Quando sou picado trabalho do mesmo jeito. A gente trabalha doído, mas faz esforço para terminar o trabalho, para pagar o que a gente deve. Se eu for embora no dia que eu fui picado, é um dia de trabalho perdido, por isso que a gente faz esse esforço”, relatou à fiscalização.
Investigação
Para pagarem suas dívidas com o empregador, trabalhadores chegam a continuar trabalhando mesmo depois de terem sido picados por escorpião
Com base em denúncias, o MPF e o MPT já apuravam as irregularidades trabalhistas na cadeia produtiva da piaçava em Barcelos.  Em dezembro do ano passado, integrantes do MPF aproveitaram a realização de um projeto do órgão na região para colher depoimentos e fazer um diagnóstico da situação.  A estimativa é que pelo menos mais 80 trabalhadores vinculados a Luiz Cláudio estejam nas mesmas condições que os 13 resgatados, além de outros ligados a outros empregadores.  Por essa razão, as investigações e fiscalizações vão continuar.  O MPF estuda adotar medidas judiciais na esfera criminal.
No fim de maio, a Justiça do Trabalho do Amazonas, a pedido do MPT, determinou a quebra do sigilo bancário de Luiz Cláudio e sua empresa, e o bloqueio de R$ 255.472,94, além de imóveis e veículos, para que se garanta o pagamento das verbas rescisórias e indenização dos trabalhadores resgatados. Segundo comunicado do órgão, o procurador Renan Kalil pediu a liminar “diante das condições extremamente degradantes a que estavam submetidos os empregados, endividados, isolados geograficamente e sem qualquer expectativa de receber seus direitos trabalhistas”. Segundo ele, a medida foi necessária porque o empregador “descumpriu o poder de notificação do Ministério do Trabalho e Emprego para a realização dos procedimentos administrativos cabíveis e também procedeu de má fé nas negociações entabuladas na semana seguinte ao resgate dos trabalhadores, quando houve o acordo de pagamento das verbas rescisórias e indenizações devidas”.
No último dia 21, o MPF e o MPT entregou uma lista de recomendações a órgãos e autarquias estaduais e federais das áreas do meio ambiente, produção rural, trabalho e emprego e política fundiária no Amazonas, com indicações compromissos no sentido de regularizar a cadeia produtiva da piaçava e acabe com o regime de aviamento – sistema de adiantamento de mercadorias a crédito – na atividade extrativista do estado. À Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, por exemplo, recomendou-se que “deixe de promover qualquer tratativa com os patrões que explorem a piaçava sob o regime de aviamento, no qual os trabalhadores são submetidos a condições análogas à de escravo, que legitime essa prática” e “desenvolva ações permanentes de formação e capacitação dos piaçabeiros, inclusive mediante ações de conscientização quanto às relações de trabalho nos piaçabais”.

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